sábado, 11 de dezembro de 2010

PALAVRAS CONTIDAS


Eu sei amar de longe. Não sei quando aprendi. Ou melhor: sei, mas não quero dizer agora. É uma vitória aprender a amar de longe. Acreditar que o pensamento é capaz de se comunicar sem as palavras ditas. Que as palavras podem se materializar sem a fala. Que as palavras se locomovem por ondas e são capazes, mais que as palavras ditas, não só de dizer, mas de tocar, de acender. Palavras estão represadas em mim e, apesar de fazer terapia para dar vazão a elas, elas dóem aqui. Porque são muitas e porque não são apenas as palavras que eu não digo. São também as palavras que eu não ouço. Mas não importa, vou navegar com minha alma sinestésica pelas ondas do pensamento até quem eu quero e despejá-las, letrinha por letrinha. E, com todas as letras tocarei e reverei bem de perto aqueles a quem quero dizer, a quem quero explicar, a quem quero bem, quero mal, quero não querer. Bem de perto, à medida que derramarei sobre ouvidos distantes e despreparados, todas as palavras contidas, vou respirar um pouco mais fundo, sentir um cheiro, fazer um vento. E quem sabe nesta hora não venha, com o ar que inspirarei, as palavras que não ouvi, que tanto me dóem e que talvez jamais eu ouça, a não ser assim: se eu for buscá-las.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Deixe que chova aqui dentro!


Quando chove no verão, depois de toda aquela sensação de sufocamento e calor, os poros inundados de suor, a cabeça rodando devagar, slow motion, então começa a ventar. E é um vento maravilhoso, refrescante, apesar de nada comedido, quase agressivo, eufórico. Mas é um vento de frescor, de alegria, de fôlego. É o vento da chuva que se aproxima e que levanta a poeira e traz pras narinas o cheiro de terra molhada que a quase todos agrada. Então, aquela sensação de calor vai sendo tomada por outra, tão bem vinda, reconfortante, almejada. Alguém se lembra de fechar as janelas, mas para quê? É só água! E seca, e evapora, da mesma maneira que a água salgada depositada na pele encrudesce: seca e miúda, na tez aliviada. Deixem as janelas abertas! E pinga, pinga dentro da casa. A chuva também agrada às paredes esturricadas, ao chão trincado pelo calor autoritário, dominador. E então venta, o vento de chuva macia, que percorre o imóvel, atravessa as janelas em corrente. Há pingos pelos cômodos e pessoas aliviadas, debruçadas nas janelas. Está molhando aqui dentro, alguém grita. Mas deixe, deixe que molhe! A chuva é bem vinda, e logo passa, logo seca. É só água, que nada estraga, só alivia.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

CARRANCA

Qual a dimensão de uma primeira impressão?
De uma postura ereta ou de uma boca arreganhada ou de ombros tensos, curvados pra frente?
De uma bunda empinada ou um nariz empertigado?
Qual a importância dos lábios cerrados ou da amistosidade amplificada, ao primeiro contato?
Por que o retrato é tão valioso neste mundo tão vago?
Por que quem vê se deixa iludir tão facilmente, por um personagem montado?
A carranca é a escultura feia que ilustra o barco, e que afasta as maldições de seres indesejados.
Quem é de bem, tem na carranca um escudo, uma blindagem.
No mundo primitivo era de se ver além, não apenas com os olhos.
A carranca era uma proteção, com sua cara feia e misturada de criaturas várias. Era a cara do bem na feiúra encruada e talhada em madeira.
Ter na face uma face medonha não quer dizer que no espírito não haja uma benção, um infinito de benignidades a serem compartilhadas.
A carranca do meu barco afasta o que é mau e aquele que se deixa cair na cilada da receptividade oca, coberta de inverdade.
Quem vê além sabe que, atrás da careta e da postura ereta, da aparente opulência de quem precisa manter-se reta, há muito mais que a beleza da carne.
Há um espírito, uma alma, duas palmas abertas.
Há a pérola encoberta na concha fechada.
E a graça está em guardá-la e ver quem é capaz de achar, dentro da concha de lábios colados, a jóia que brilha.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

LARI




Lari
Enquanto um nome é bússola
O outro é risada
É a brisa brincalhona
Que sobe a saia
Enquanto num nome a infância
N’outro, a alegria de andar solta
Dona de mim, ou quase
Enquanto um nome é o chão
O outro é o ar
O sonho de voar
Quase Alcançar o liame
Em parte é loucura, mas não
Somente a arte de se aproximar
E deixar falar
O coração
Lari
Me faz rir
Me faz sentir
Livre pra seguir
Simplesmente em frente
O outro nome faz pensar
No que deixei passar
No que podia ter sido
Mas, quê fazer, se meu destino
É de alma e sentidos
De uma risada encaracolada
Em cachos divertidos
Malucos como viver assim
Porque é assim que é
E gargalhar...
Lari
É o nome que escolhi
Porque escolhi voar
E assim tem sido
Apesar e enfim
E assim será
Até quando?
Lari ar, Lari água
Lari horizonte
“Ad eternum” enquanto
O sol deitar
No mar.

domingo, 26 de setembro de 2010

Massa de modelar

De que matéria é feito, você?
Massa de modelar toma a forma que a gente quer.
Pode ser circular, pode ser quadrada,
Posso arrancar um pedaço ou grudar um bocado.
Posso entortar pra direita, pra esquerda,
Agrupar cores e objetos vários.
Massa de modelar é uma boa matéria
Pra compor as pessoas.
Não fere, não parte.
E se parte, não é com dor,
Mas com novidade.
Tem de toda cor e o cheiro é nostálgico.
Lembra a pré-escola
E, do colégio, o pátio,
Que cheirava à lancheira.
(Recreio de criança tem cheiro de lancheira,
De suco guardado na garrafinha térmica
E lanche embrulhado no guardanapo.)
É incrível o que se pode fazer
Com massa de modelar!
A gente pode esfarelar de tanto amassar,
Pode enrolar com as palmas das mãos
Até que todas se tornem de uma cor só.
Massa de modelar é uma matéria boa
Pra moldar a pessoa.
Não sei porque esta pele
E por baixo dela, a carne,
Os ossos, as veias,
A alma, a consciência.
De que matéria você é feito?
Massa de modelar não requer ciência,
Não requer preparo, nem dom.
Qualquer criança é capaz de dar-lhe vida
E depois outra vida
Qualquer vida que seja,
Mesmo já sem cor.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O meu "Caminho", explicando um pouquinho



Explicando um pouquinho:
A gente dorme em pousada,
Ou casa de morador.
A gente come na estrada
Ou onde houver uma sombra,
Um tiquim de água, um mijador.
Ou, todo matinho é banheiro,
Na hora do apuro.
Mas não se escandalize,
Que, apesar da poeira,
A gente é limpinho:
Leva sempre um saquinho.
Raça de peregrino:
De Tambaú à Aparecida.
Terço pendurado na mochila.
Dedos dos pés vermelhos, inchados,
Mas vale o trabalho:
É paz na cabeça, paisagem na lembrança
E, no encalço de Nossa Senhora,
O resgate da esperança.
E uma siriema atravessou calminha o caminho.
E um maluco-beleza,
Com sua bike-casa passou,
Com um cachorrinho.
Com ele, aprendemos mais uma:
O golpe do miojo:
Que enche o estômago do andarilho,
Que apela pro coração mole
De um que lhe acolhe.
Vários tipos de passarinhos,
Coloridos, brincalhões.
João de barro e a casinha bem feita,
Que fez pra sua passarinha.
E um toc-toc desconhecido:
É pica-pau que se mostra
E ‘avoa’ enquanto passo
Com enfoque pra seu penacho vermelho.
Que surpresa! do desenho direto pra meu roteiro.
Tem gente que faz de moto, todo equipado.
Tem gente que faz com alguém do lado,
Tem gente que faz sozinho,
Tem aquela que faz com o namorado,
E aquele que faz com a “patroa” na garupa.
Tem gente que faz com bicicleta
E tem gente que é só Deus na frente,
Nossa Senhora na curva.
Tem gente que faz pra agradecer,
Gente que o objetivo deturpa.
E gente que faz pela fé,
Pela saúde de alguém, ou pela sua.
Gente que faz pra pedir,
Ou apenas por amor à luta.
Em tudo tem um porquê,
Mas o sentido, na verdade,
É alcançar a imagem,
Beijar os pés da santa.
Tem gente que fala em vão
Seu nome sagrado.
Mas põe a mão no coração! –
Levantar em vão é pecado!
Tem lugar que simplesmente não passa carro
E um barulho de água ao longe, quase sempre.
Aqui pertinho de um barranco escorre...
De onde vem esta fonte?
Quando a subida é pesada, respira...
Que tem mais adiante.
Mas não se apoquente, siga.
É a Santa na frente.
A batida repica, o coração é na boca,
Mas entrega, então, em intenção,
Esse esforço imenso.
Deus é supremo e cuida
E tem uma setinha amarela por todo o caminho,
Que orienta o peregrino quando está perdido.
A setinha o guia, a fé aumenta.
Mas tem que fazer à vontade,
Que o objetivo não é chegar logo, mas ir.
Se rápido andares, perderás as paradas,
As grutinhas na estrada,
A chance de sentar um pouco
Num banquinho debaixo d’árvore.
Quando o que restar da subida
For maior que suas forças,
Pare e olhe pra baixo.
Aprecie de onde você está
O que você deixou pra trás.
E na hora em que o desânimo domina,
A esplêndida natureza te reanima,
Pois quanto mais alto o morro,
Mais a paisagem é bonita.
E na dificuldade maior,
A vista é quase miragem,
Ou como vista da aeronave.
Aproveite, então, a oportunidade,
Pra voar mais um pouco.
Estende a mão pra Ele,
Agradece, em sussuro, pra Ele ouvir,
Pois Ele está bem aí em cima.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Quanto falta


Não pense no tempo
Deixe que ele passe
Deixe que ele aja
Sem que você reaja
Com seu pensar
Com seu penar
O tempo não foi feito pra pensar
O tempo foi feito pra passar
Longilíneo e fugaz
Devagarinho... Quase perco o ar
Nestas tardes secas de inverno
Intercaladas de veranicos
E o tempo a passar
Respiro a falta de umidade
Enquanto segue o tilintar
Mas prefiro não pensar
Só posso viver assim
Só posso seguir
Liberta de raciocinar
A respeito de quanto tempo falta
Pra chover
Ou pra acabar.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

POETAS SÃO SOZINHOS


Poetas podem ficar consigo
Sem perigo de tédio
Ou de solidão
Poetas são verdadeiros
Indivíduos
São também o mundo inteiro
Resumido em frase
Verso
Ou cantiga
Poetas não tem medo
Poetas são amigos
Do silêncio e do frio
Poetas são seres à parte
São humanos vorazes
Nutridos na filosofia
Ancorados no buraco negro
Onde moram as perguntas
De respostas vazias
Poetas são como eu
Do breu fazem a luz
Da luz, o fechar
Dos olhos pensativos
Do abstrato
Um retrato do vazio
-A ternura de ser tão assim-
Poetas são sozinhos
Mas são o mundo inteiro
Poetas são verdadeiros
Companheiros de si mesmos
Sorte minha
E de todos por aí
Sorte de quem senta pra ver
Um dia, o sol nascer
Ou se despedir
Poetas são de se ler
De se contemplar
De se amar com os olhos
Comovidos
Ou com o coração
Mexido
Pela doce emoção
De sentir no que ouve
A maior dimensão
E o carinho
Das palavras que nascem
Da solidão sem motivo
De um poeta consigo
A tecer seu poema
E esmiuçar
De seu próprio dilema
A saga terrena
De todo dia.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Carta de amor a meu pai


Gostaria que esta carta de amor bastasse. Uma carta boa o suficiente pra não precisar de outras. Mas não bastará. Nunca será suficiente ter dito uma, duas, cinqüenta, quinhentas, três mil vezes, que você é o melhor pai do mundo, o melhor pai que uma menina, uma mulher, uma mulher-menina poderia ter. Um pai presente, carinhoso, companheiro, solidário, honesto, bom exemplo, compreensivo, educador, bom caráter, bom homem, trabalhador, dedicado, amoroso, bom marido. O pai que qualquer um gostaria de ter, mas que Deus deu pra mim e pra meu irmão. O homem mais especial que poderia haver neste mundo, porque além de especial de verdade, é o homem que Deus destinou para que vivêssemos e compartilhássemos a maior parte da vida, das conquistas às dificuldades, das lágrimas às risadas, dos primeiros passos aos primeiros de tantos tombos, que continuamos a dar vida afora.
Pai, você é tudo pra mim. É meu querido, meu apoio, meu amigo, minha força de continuar, de estar, de ser.
Esteja sempre conosco, não fale em ir embora. Sinto-me como uma criança, incapaz de viver sem os pais, ainda em total dependência de vocês. A diferença é que, só agora sei, neste quesito jamais deixarei de ser criança. Jamais terá sido suficiente estar a seu lado, viver minha vida com você, pra você. Sempre vou querer mais. Sempre vai ser necessária essa companhia, essa aventura, essa alegria de te ter e poder dizer: pai. Meu pai. Que faz tudo por mim, por nós. Que é a prova viva de que o que vale nesta terra não são conquistas materiais, (apesar de tê-las feito também, muito! Graças a elas, temos nossas casas, nossos abrigos, nossos lares, nossos veículos, nossa educação). Mas, tê-lo e conscientizar-se do quão você é especial e importante para nós todos, é a lembrança de que o verdadeiro valor está no sentimento, no cuidado, no carinho, na dedicação àqueles que se ama.
Nenhum homem no mundo é melhor pra esta família que você. E tenho certeza que muitos invejam o privilégio que Deus me deu de tê-lo como pai.
Eu mesma agradeço muito por esta graça e rogo a Deus que não me castigue tão severamente por ter falhado tanto, por ser tão cheia de defeitos e involuções, a ponto de privar-me da sua doce e alentadora companhia, a não ser daqui tanto tempo que eu sequer possa imaginar.
Que Ele continue a abençoar-me, mesmo sem tanto merecer, com a tua existência unida com a minha, por muitos e muuuuiiiitos anos, nesta vida e nas que vierem por aí.
Te amo mais que tudo.
Beijos,
Da sua biju.

sábado, 17 de julho de 2010

Minha coleção

Minha coleção de textos
Minha coleção de músicas
Minha coleção de erros
Minha coleção de versos
Minha coleção de fotos
Minha coleção de medos
Minha coleção de sonhos
E de lembranças
Minha coleção de besouros
Que trombam desajeitados
Nas paredes intrometidas
Minha coleção de cores
Minha coleção de imagens
Minha coleção de amores
Minha coleção rara
De jóias desconhecidas
Minha coleção gigante
De letras brincalhonas
Que se unem em quadros
Valiosos como ouro
Minha coleção de fatos
Minha coleção de lágrimas
Minha caixa de tesouros
Minha coleção de dores
De tristezas incontidas
De perspectivas vazias
E de momentos felizes
Minha coleção de palavras
Minha coleção de caixas
Repleta de recordações
Repleta de cartazes
Que alardeiam ao mundo
Tudo o que passa e arde
Nos corações feridos
Nas almas aturdidas
Pelas emoções várias
Capazes de provocar risos
Ou prantos contínuos
Minha coleção de vida
Minha coleção solitária
Minha coleção de azuis
E de rosas e marrons escuros
Minha coleção de vozes
E de sons tão lindos
Minha coleção única
Que me incentiva e inspira
Todo dia apesar da poeira
Da noite ou das cruzes
Minha coleção de luzes
Minha coleção querida
Meu blog que me salva
Da falta de companhia.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Dádiva e emoção


Estes últimos dias
Músicas várias me preenchem
Como se eu estivesse vazia
Vazia de poesia
E então fico a pensar
O que será toda esta rima
Que não me deixa
Que me alucina
Toda hora
Dia após dia?
O que será 
A emoção que contagia
Que me enche de mim mesma
E da beleza fina
De uma voz macia
Cantando o amor
Não correspondido
Senão minh'alma
Sempre cheia e zunindo
Na mais linda poesia?
Que ora se esvai em água
Ora escapa em versos
Ou em admiração sincera
Da dádiva que mora perto
E dentro de um grande poeta?

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Por causa de um abraço



Por causa de um abraço
Eu quis tudo.
Por causa de um abraço
Fofo e fundo,
Eu quis muito mais
Que o limite
Daquele poço.
Eu quis cavar em terra dura
À procura de diamante
Onde só havia pedra
E animais minúsculos. 
Quis eu encontrar seguimento
Na minha procura de dois
Mesmo em solo infértil
E árido.
Um abraço apertado e quente
Uma tarde de sol poente
Em minh’alma enternecida
Na busca do que é infinito.
Coração
Em outro coração premido,
Em batidas rítmicas envolvidos
Em nubladas decisões.
Tomadas sob a influência
Da carente essência
E do calor e compasso
Cadenciados no embalo
De dois seres
Num abraço bom.

domingo, 11 de julho de 2010

Outro de mim




Há pessoas que têm medo de palavras. Medo de palavras feias, de palavras que machucam, de palavras que transmitem sentimentos de dor, de mágoa ou de luto. Como se não pudessem lê-las sem perder a capa que as protege dos sentimentos ruins. Como se não pudessem ouvi-las e continuar a seguir sendo elas mesmas. Há pessoas que preferem não ver e não ouvir. Sou assim também, às vezes. Mas gosto tanto de escutar como um poema, uma história, uma canção, podem dizer tanto sobre um sentimento que às vezes não conheço, mas que reconheço como se o tivesse vivido. E quando já o vivi então, é como se encontrasse um abrigo, como se reconhecesse que existo, que faço parte desta espécie tão ambígua, tão cheia de tampos e vigas. Ouço falar da saudade, na música de Chico, e sei que, mesmo se nunca a tivesse sentido, saberia o que significa, com o fundo de minha alma, com minhas lágrimas mais escondidas. E não me assusta a tristeza, a dor, o amor, a loucura. Assustar-me ia se não fosse da natureza deste ser que é você e que sou eu. Mas se todo mundo é assim, por que não tocar e sentir, por que não ouvir, por que não se ver nas palavras que sangram ou sorriem? Por que não se abrir pra todas as sensações de que se é capaz sendo assim: de carne? Não gosto do que é triste, mas gosto de sentir que sou igual a outro de mim, às vezes desejando o fim e às vezes imensamente capaz de persistir.

Anéis imperfeitos



Passo os dedos
Rente ao couro cabeludo
Sinto curvas, nuances
Anéis de cabelos que rodeiam
Retomam o formato original
A sinuosidade única
Dos pensamentos
Similares à rebeldia
Dos cachos avessos
À disciplina e comportamento
Não me reconheço
Com esta moldura lisa
Obediente e concisa
Adequada à moda dos dias
Indiferente à minha idiossincrasia
À mania de ser o que sou
À revelia de aceitação
Admiração
Ou sintonia
Quero de volta a cara e o cabelo
Que nasceram comigo
Cor, formato e enredo
Difícil todo dia
Mesmo que não desembarace
Mesmo que jamais se ajeite
Mesmo que me torne mais cheia
Mais infantil e mal feita
Quero encaixar os dedos
Naqueles anéis imperfeitos
Que formam os bravos e finos
Cachos de meus cabelos.

sábado, 3 de julho de 2010

Pérolas no lixo



Existem pessoas que são como flores
Semeadas no deserto.
Pessoas que têm doçuras
Não se sabe, vindas de onde
Ou por que.
Pessoas que são flashes
De luz na escuridão.
Pérolas tão branquinhas
Escondidas na oclusão.
Pessoas assim são dádivas,
São presentes divinos.
São pedaços de sol
A iluminar o caminho.
Sementes pequeninas
Espargidas entre gravetos
De terra infértil e hostil.
São nuvens carinhosas e fofas
Num céu cinzento e repleto
De agruras e arrependimentos.
Com sua claridade e textura
E melíflua melodia,
Neutralizam o mal sentimento,
As caras feias, os gritos,
A amargura de quem é sombrio.
Povoado de trevas
Ou vazio.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Túnel do tempo


De repente, o vi. Suas sacolas cheias de compras. Presentes.
Como num sonho, ele sentou mesas à minha frente, voltado pra mim. Pude sentir seu cheiro, a textura de novelo de sua pele tão branca. O cabelo mais longo, como quando o conheci.
Vestia a roupa de sempre. Como se eu o tivesse visto ontem e ainda não se trocasse.
Os mesmos gestos e hábitos, e distância. Estávamos distantes assim, àquela distância, há um passo do fim.
Mas seu retrato era o mesmo. E não era parado, mas vivo! Como saído de um túnel do tempo. Como estacionado no espaço. À espera de mim.
Seria fácil levantar-me e tocá-lo. Dizer palavras surradas e sussurrar seu apelido amoroso, com o dengo de outrora. Senti-me como a estender a mão e tocar o passado. E apagar os dias chorados. E fechar o buraco escuro.
Mas, outra vez de repente, ele piscou. E eu vi, ao contrário, - que os segundos passavam para ele, mesmo que parados pra mim. Para que eu fotografasse a cena boa que eu apaguei com tudo o mais. Com o luto. Com o que não torna ou revive.
Então, desviei os olhos de volta. E mesmo com aquele retrato na mente, e aquela ilusão de retrocesso, ainda latente, vislumbrei as mesas vazias que nos separavam, serem ocupadas. E as sacolas cheias de presentes para crianças, carregadas pelos braços dele.
Crianças já crescidas que eu apenas soube concebidas, mas que eram a prova viva do transcorrer do tempo, do desvio de nossas vidas. E também dos dias chorados, das noites pesadas, da alegria perdida.
Então ele se levantou e foi. E vi suas costas fartas e a falha mais larga no alto da cabeça, sob os raros cabelos compridos.

Blindagem


Não quero blindagem
Quero estar sujeita aos ataques,
Quero estar com minhas vestes de carne,
Quero ser eu mesma, atreita a me ferir.
O quão interessante seria viver sem os riscos?
Sem a possibilidade de perigo?
Sem o medo de cair?
Quero o frio na barriga,
O coração palpitando, pressentindo,
O sangue correndo nas veias,
Às vezes, escorrendo da pele,
Que é a camada que fere,
Apesar de outras ainda mais sensíveis,
Que, sob ela, se protegem,
Pra que o corpo não seja morto,
À primeira assertiva do tempo
Ou da dor.
Onde há vida, há cicatriz,
E minha armadura é de coragem,
De pele, sangue e vontade.
Minha blindagem é talhada
Na matéria-prima original.
Com ela não perco o sal,
Continuo a sentir o sabor
De viver sem prever o final.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Leitura




Há coisas que não se explicam...O que diz mais que as palavrasSenão os fatos?Talvez a percepçãoA nuance que se almeja omitirOu quem sabe os traçosQue não se disfarçamNem com sensatezNem com cuidadoO que mais importaQue as justificativas detalhadasSenão o segredo guardadoNas causas veladas?Aquelas de origem secretaOu talvez desconhecidaAté do próprio artista?O ser que protagonizaAs cenas da própria vida?O que mais se aproximaDaquilo que originaAs escolhas entre as esquinasDe vários sentidosNem sempre é de se verÀs vezes só de se lerNas entrelinhas.

domingo, 13 de junho de 2010

O som e o sentido



Não quero saber mais de palavras
Dessas usadas e escolhidas
Com esmero, após várias tentativas,
Com a intenção única de compor um verso,
De encaixar-se perfeitamente numa rima.
Quero as palavras controversas
E também as palavras simples,
Até mesmo as palavras mais usadas
Na linguagem do dia-a-dia.
Não quero palavras que só rimam,
Ou enfeitam ou combinam
Com outras já pensadas e apostas
Numa estrofe integralmente planejada
E trabalhada pela métrica, pela regra.
Quero as palavras cheias,
E as palavras ambíguas.
As palavras que se calam
Quando a balbúrdia domina.
Não me importo com palavras que badalam
Tinindo alto nos ouvidos, como um sino.
Quero as palavras que me tocam
E que se completam não com som
Mas com sentido.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Defesa

É interessante perceber que quanto mais aumenta em mim a capacidade de escolher no outro, ou do outro, só o que eu quero ver, viver, saber, participar, mais se aviva no outro a necessidade de dar-me aquilo que recuso. Desperto uma revolta, uma ira. Mais que uma necessidade de revelação, é quase uma afronta para o outro que eu me negue a participar daquilo que não me interessa. E essa afronta transforma-se numa pungente força de auto-afirmação e encontro com a essência inteira daquele ser, de quem repudio um pouco. É estranho que eu seja capaz de causar esse efeito, quando o que espero é exatamente o oposto. Procuro deixar oculto, com o que ofusco, aquilo que trará perturbação à relação. Aquilo que fará que não haja em mim o mesmo ânimo ou a mesma entrega que haveria, se não aquilo. Mas esta defesa é quase um insulto. Aquele que convive com ela, sente-se rejeitado, sente-se humilhado até, pela minha capacidade de engano e minha falta de capacidade de encarar o todo. Não sabe, o outro, que é minha maneira de ficar inteira. Participar só um pouco de sua alma verdadeira, de maneira a não confundir meus planos, não exacerbar meus ânimos, não me tornar inevitavelmente insuportável ou sem forças. Porque, manter-me parte no escuro, preserva não só em mim, mas no outro, a integridade inaceitável, a personalidade incomparável. E só nessa meia-relação inteira é possível a convivência, a complacência, a emoção.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Modelo único

Não quero.
Não quero seus olhos dispersos,
Sua boca sorridente,
Seus mistérios em aberto,
A la carte
Não quero.
Não quero sua companhia,
Nem sua mão,
Nem seu abraço.
Quero seu espírito,
Seu sorriso,
Seu regato,
Só a meu lado.
Não quero o amplo.
Só o restrito.
Não quero o explícito,
Só o complexo, o omisso.
Quero seu tempo, seu viço,
Seu silêncio, seu convívio,
O exclusivo.

Juventude

Os jovens...
Procuram coisas que têm histórias.
Velhas canções, de velhas bandas monstruosas, caquéticas...
Assim descobrimos que estamos amadurecendo.
Quando não temos mais que buscar coisas velhas pra encontrar histórias, porque as histórias se multiplicam.
Tantas épocas... tantas vidas...
Músicas velhas, às vezes irritam.
Músicas novas para a sinfonia do presente.
Trilha sonora do agora.
Sabemos que os momentos atuais são as histórias futuras - povoadas de músicas. E de cores. E de luzes.

O violão é o artista

O violão é um artista,
Sorri com sua boca circular,
Conversa com suas lineares línguas,
Canta com seu vibrar rítmico.

“Não. Ele não é um artista.
É apenas a caricatura da mulher brasileira!”

A mão é música!
Toca as cordas, determina as notas,
Produz o som.

“Não. A mão não é música, nem artista.
Mas é uma pista.”

O ouvido é o mestre.
Possibilita o entendimento, a sintonia, a percepção.

“Não. O ouvido não é o mestre.
É só um complemento,
É o objetivo da canção.”

O homem é o criador.
É a mão, o ouvido. É o artista. O poeta.

“Não. O homem não é música.
Música é também poesia.”

“Não. O homem não é artista.
Artista é o intermediário do sentimento.”

Minto então: o violão é o artista.
É o instrumento.
A natureza.
A criação.

Errar é humano

Só há uma certeza:
Você vai errar.
A cada dia, a cada passo,
Há uma certeza
Em nosso encalço:
O erro é fatal,
Apesar do embaraço.
É o motivo,
E a destreza,
É certo percalço
Do dia-a-dia.
É mais que humano
Mais que provável.
É certo
Como matemática.
Por melhor que seja a intenção
É o dano necessário,
Relicário do coração.
É certeza,
Sobre-humano, sobrenatural,
Como movimento e estática
De pessoas e de momentos.

O perdão é o esquecimento.
E o esquecimento será o perdão?
Terá ele o condão de me libertar
Reconstituindo o filme?

De limpar o cristal,
Reintegrar o quebrado do vidro,
Quebrar as muralhas,
Destruir os abrigos?

E entregar-me os campos desimpedidos
E o céu limpo
E as águas correntes
Restituindo as migalhas?

O esquecimento está no perdão.
Perdoa, então, coração.
A si, a outrem,
Além, aqui,
Ontem e hoje – a semente.

O perdão é o esquecimento.


segunda-feira, 31 de maio de 2010

Por favor amor, não tudo!


Não posso com tudo. Só suporto um pouco. Não ofereço tudo o que há em mim, porque da mesma maneira, tu não suportarias. E se suportasses, ainda assim pra mim seria um martírio dividir o que não hei de suportar de volta. Só tolero o pouco capaz de me fazer flutuar. O pouco ineficiente em revelar o lado sombrio, a dúvida, a dureza dos fatos. Não suporto tudo, como poderia? Falta em minha estrutura o embate, a coragem do enfrentamento, a obstinação. Com pouco, já tenho muito. Porque tenho a imaginação, a fantasia e o medo. Ah! O medo... Sempre ele está. E nele há um mundo de detalhes e sentimentos sem brechas. Não suporto tudo, só um pouco. Em mim já há muito. Dos outros, e do absurdo de continuar. Por que é de tão raro entendimento o fato de que meu sentimento não coaduna com a revelação completa? De que a entrega aqui só é possível à meia-luz, a metade nas trevas? Não me orgulho. É difícil a restrição a que me submeto. Mas é o preço do prosseguimento, o fardo da emoção que eu quero que haja. Apesar de tudo o que passou contigo, apesar de tudo o que não cabe em mim, um coração que palpite é meu objetivo. Mesmo sabendo-o assim: meia-vida, sem terra. Nele há um espacinho. Uma vaga secreta, ainda inteira. Mas nele não cabe tudo. Só um pouco. Só um pouquito assim. Seja bom, pois, comigo, e aceita-me mesmo assim. Só a parte de mim que ainda cede à parte tua que diz me amar e que ainda crê que não irás já, nem mais cedo que o fim.

domingo, 30 de maio de 2010

Tanta água

Em tudo, a água. No meu pensamento, no sentimento, no tempo, no corpo, na alma. Preciso da fluidez, da substância, da condução da água. Nos meus poemas e nas minhas falas. Nas relações ou nas finalizações. No trabalho ou na casa. São gotas que pingam aos poucos. Ou correntes que levam tudo. Chuva que soa doce, na fresta da janela larga. Compasso suave de água, que segue cadenciada. Fluindo em córregos, ou reunindo-se em lagos. A água dos argumentos sempre em movimento. A água que é alimento da alma enturvada, esvaída em lágrima. A água que une a alma solitária às outras, mergulhadas no âmbar único de todas as almas. A água que lava o corpo, que revela o fosco, que rebrilha o brio, que preenche o oco. Que molha, refresca e toma. Revela e torna. A água de meus beijos. De meus pesadelos. Dos lagos e poças. Da memória vaga. Do útero. Do citoplasma. A água do agora e do faz tempo. A água que dá cor à Terra. Que está fora e dentro. Que é azul e vida. Enlace entre o que fica e o que vai. Em tudo, a água. Em que se nada e se nasce. A qual se bebe e se chora. A que molha e lava. A que entra e sai. Na umidade da água, a fertilidade. O melhor encaixe. O molde flexível que se adapta. Os peixes coloridos. O barulho da paz.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Queria desenhos


Meus desenhos são as palavras
Com elas faço caras, nuvens e mares
Com elas preencho tudo de cores,
Ou retiro
Pincelando-as com a apatia mesma
Dos passados amores
Meus desenhos são as palavras,
Esvoaçantes como passarinhos
Ou tristes como as lágrimas
De causa desconhecida
Por vezes são tão vivas,
Repletas, cheias, sortidas
Outrora tão escassas, desprovidas
Da argamassa que edifica
Ilustram em branco e preto
O silêncio contido,
O sentimento perdido,
A conquista que se esvai
Meus desenhos são as palavras
Mas ainda são melhores
Porque delas além de imagens
Há sons, há paragens
Delas, simultâneas, caem
As mordaças habituais
E a mente enrustida
Meus desenhos são as palavras,
Coloridas ou esfumadas
Tocadas de fel ou de ar
São os melhores retratos,
Os mais caros bordados
A ilustrar o som que rima
Da dor que sai.