segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Seus traços

Seu sorriso largo, de gengiva à mostra. Sua risada em momentos impróprios ou de coisas que a gente normalmente não riria. Seus cabelos finos, de duas cores, que você põe bobs quentes aos domingos, pra encheiar. Suas mãos bonitas, de dedos compridos, artísticos... suas unhas largas, quase sem cutícula.Suas cochas grossas de pele branca. Suas canelas finas a contrastar. O queixo anguloso, os olhos brilhosos, de pretos cílios. Seu jeito de cantar: agudos para o alto! Sua alma entusiasmada de melodias. Seu organismo frágil, sua cabeça que dói, seus dedos que tocam ligeiros as cordas da viola. Sua autoridade intimidante. Sua atividade constante. Sua entrega à família, ao trabalho, a Deus. Sua comida... O cheiro das suas gavetas. Sua voz grave de amanhecer. Sua pele fininha. Sua autenticidade, sua simpatia, sua simplicidade que cativa, seu calor que incentiva, sua vidência de mãe. Sua direção irrepreensível, seu andar devagarinho, seu toque raro, que te valoriza. Suas escolas, seus alunos, suas aulas, suas mestras, suas festas. Suas roupas de ficar em casa, suas novelas. Sua sonequinha da tarde nos braços do seu homem, meu pai. Seu ventre, seu semblante, seu colo: berço e oásis de vales e montanhas, de nuvens brancas e tempestades. Sua coragem e força de acreditar: nela adormeço envolta como nos charutos da infância, sua criança. Prossiga.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

DOCE NA VIDRAÇA

Um sonho em que não se acredita
Às vezes vinga, mas jamais torna
A ser bonito como a cobiça fora de hora
De um doce, por uma criança
Pedras e areia sob os sapatos
Pés doloridos de escalada
Arcos pendurados sobre a cabeça
E meninos escondidos sob togas
Pretas da maturidade que brota
Entre as paredes da universidade
Olho o horizonte e vejo casas
Que se sobrepõem nos morros
Umas sobre as outras, em alvoroço
E um laranja que se deita sobre azuis
Tão insossos quanto o gosto 
Da língua cortada de fiapos
Pelas frutas típicas penduradas
Nas árvores pequenas à beira da estrada
Continuo olhando a imagem sem tocá-la
Como atrás de uma lente fotográfica
Como o doce por detrás da vidraça
No bar da infância recriada

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Um Mondego de saudade

As pontas dos meus dedos estão rígidas e cascudas
Uma aspereza encruece minha pele das mãos e do rosto
A frieza é densa em névoa e me apaga
A face entre semblantes avessos a risada
O mundo é outro e as estradas fazem-se cegas e surdas
Às minhas queixas acerca de sons e letras mudas
Que faltam ao vocabulário
Pro meu álbum de figuras e dramas
Muitos espaços e nuvens
Xales, cachecóis, gorros e luvas
E oceanos que se aprofundam em minh’alma
Submersa num Mondego de saudades
Da minha gente, das roupas curtas e das cores
De seus fevereiros
Quando subo as escadas de quatro lances
Em monumentais e mínimas pisadas
Deparo com paredes e estátuas antigas e duras
Tão longe do romanceado das ruas
Que eu desenhava na distância

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Chaga

O que seria de mim sem você?
Sem esta fenda aberta e que grita
Ninguém me poderá entender
Talvez um paquistanês ou alguém
Que não desabone paladares agridoces
Quem poderá estar comigo
Sem estranhar o amor que tenho
Por você, minha ferida
Portal pr’um um universo paralelo
Habitat de seres ininteligíveis
Que se comunicam através de antenas
Como baratas nojentas, que voam
De encontro às ondas invisíveis
Que alimentam os medos
Quem além de mim contempla
A cicatriz com apego?
Quem por aqui vive em paz e até implora
Pela inglória das próprias quedas
Pela ferrugem que emperra
A engrenagem das portinholas
Quem além de mim pode entender
Que o jardim morto do pretérito
Está vivo em outras cores
Quem cultiva uma chaga
Como uma ponte pra alma
Quem não subestima as dores
Quem não se aparta das falhas
????????????????????

Chaga

O que seria de mim sem você?
Sem esta fenda aberta e que grita
Ninguém me poderá entender
Talvez um paquistanês ou alguém
Que não desabone paladares agridoces
Quem poderá estar comigo
Sem estranhar o amor que tenho
Por você, minha ferida
Portal pr’um um universo paralelo
Habitat de seres ininteligíveis
Que se comunicam através de antenas
Como baratas nojentas, que voam
De encontro às ondas invisíveis
Que alimentam os medos
Quem além de mim contempla
A cicatriz com apego?
Quem por aqui vive em paz e até implora
Pela inglória das próprias quedas
Pela ferrugem que emperra
A engrenagem das portinholas
Quem além de mim pode entender
Que o jardim morto do pretérito
Está vivo em outras cores
Quem cultiva uma chaga
Como uma ponte pra alma
Quem não subestima as dores
Quem não se aparta das falhas
????????????????????

INGÊNUOS

Tu olhas pra mim e desdenhas
Já não sou tão bonita amassada
Com sono, com fome, prenha
Eu já não sou a mesma, tu lamentas
É todo dia a mesma coisa, o mesmo lenga-lenga
Os lençóis nos envolvem
E a gente acorda ébrio um do outro:
Maldita intimidade!
Varro teus pentelhos e tu recolhes minhas unhas
Insultos cara a cara, olhos nos olhos
Verdades face to face. - Pra quê?
Só quero mesmo te comer
A gente almoça e passeia
As mãos de um no outro
Com carinho, depois com desejo
Já não nos lembram, os desaforos
Teus olhos doces iluminam-me o rosto
E teu corpo me acolhe qual um cobertor
Tu te refugias em mim, dentro
Onde não há palavras e nenhum argumento
Que me desabone
E então eu te amo! Sou, eu, a perfeita
Sua musa, seu tesouro – perdoe-me!
E não me importam teus cheiros, teus hábitos
Teus pêlos pela casa
Sou tua estufa então, e vem-te a vontade
De, em mim, cultivar flores
Orquídeas de todas as cores
Pinheiros sem folhas, imensos e eretos
Pelo horizonte
Beija-me com hálito de álcool
Quer que eu seja tua casa
Rodeia-me de águas; tua ilha particular
Levanta teus tijolos, repleto de sons e doces
E me exalta: Rainha!
Até que eu fale e volte a ser
Só uma mulherzinha arrogante e difícil
Sozinha aos trinta e cinco
Ninguém te pode suportar! Você manda demais!
E eu acho lindo teu jeito mau
E dou-te um beijinho
Pelo chão se espalham as ruínas
Da casinha que levantávamos
Com ímpetos de adentrar ao céu, num vôo
Como um passarinho destemido
À procura do êxtase infinito
No buraco negro do amor

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

TEMPO DE AMY


Se eu ouço a Amy, teletransporto-me pra um buraco no tempo, nem passado, nem futuro, algo num intervalo, numa fenda entre o agora e uma cena não editada de uma fita. Uma rima bonita sem encaixe no texto, que a gente elimina sem dó e fica no ar, rondando como lixo na atmosfera, em volta dos satélites da Terra e as estações da Nasa, no espaço.
É tudo tão frio que a gente respira como quem fuma, soltando fumaça.
Um homem passou com uma prancha de esqui e me pareceu um skate comprido, mais charmoso. Afinal, o branco é uma cor fina. A neve só poderia ser chique.
Ninguém usa o futuro do pretérito, este tempo de poeta, tão Amy Winehouse, nestas terras altas, cheias de colinas e concreto duro de outros tempos. Ninguém usa gerúndio, como se nada estivesse em andamento enquanto se vive, como se só houvesse os tempos definidos e todos os outros, interstícios, passassem despercebidos.
Quando ouço Amy, penso num filme em preto e branco ou numa ópera. Penso em negros de subúrbios americanos e em cabelos brancos de novos amigos. Penso em cinema, arte, o obscuro, os motivos, tudo que a gente não vê e nos move, tudo que fica ao redor e não se absorve.
Penso no que é bonito, mas passa. E nos edifícios que nos envolvem e nos deixam um pouco bêbados, como os mantras entoados pelos indianos e os que oram nos cultos. Como os atabaques da umbanda.
Enquanto Amy canta, estou envolta num véu inebriante como incenso e ando por campos nublados, entre árvores vazias, só os galhos dispostos à espera do clima ameno de dias de primavera, e as casas balançam, com suas janelas pequeninas da Idade Média, enquanto a estrada à minha frente se adianta, com seus mistérios e coisas estranhas: uma alienígena perambulando entre as gentes, impedida de conjugar os verbos em todos os tempos.
Mesmo assim é doce e suave. Quem não é estrangeiro neste mundo grave?
Amy canta e me conduz por entre ruas tristes e lindas, como a Europa.