quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Cidade perdida


Queria a presença legítima
De um tempo extra,
De um momento que exista
Entre o agora e o depois.
Viver as escolhas deixadas
Nesse instante embutido
No avesso dos panos guardados
Que não vestimos.
Ouço você me chamando,
Mas não atendo
...
(O real não deixa).
Vejo você pelo espelho,
Sua sombra na minha calçada.
Adianto seus cabelos brancos
Sobre minhas pegadas
E eu sempre a contar-lhe
Meus planos e queixas.
Mora entre nossos olhos
Uma cidade perdida.
O vazio das ruas desertas
E a ternura das coisas sonhadas
Por nós não vividas.
Queria permanecer neste espaço
Entre o seu sussurro e o meu suspiro.
Queria mais palavras,
Assuntos incontidos.
Vejo você chegar 
E, com um aceno de mão,
Resgatar-me deste lugar
Reservado a mentiras,
De amanhãs, impedido.

QUANDO A GENTE SABE CHORAR

Quando a gente sabe chorar, as pessoas não notam. As lágrimas caem habituadas, molemente. Não mancham, não tingem os olhos de vermelho que, de tão bem acostumados, também não incham. A maquiagem permanece intocada, a gente sabe como enxugar a água da alma sem borrar os cílios. Quando a gente sabe chorar, as lágrimas vazam faceiras, destemidas, pingam fartas sobre as coisas, mas não deixam marcas, nem rastro. Quando a gente sabe chorar, o outro não vê, não questiona: “ora, por quê?”. A gente chora como quem fala um palavrão ou espirra. Quem sabe chorar não se envergonha e não se esconde. Não é preciso. Quem chora convicto e sem medo é como se vestisse o uniforme cinza do pessoal da limpeza, atravessa os caminhos, invisível, as lágrimas compridas vestem-no inteiro, como um escudo. Quem sabe chorar não segreda, seus abismos ficam expostos, cheios de poças, das lágrimas em que se atira. Mas não importa, ninguém enxerga. Quando a gente sabe chorar, as lágrimas são como objetos no lugar ou fotos na geladeira. Depois de um tempo, a gente já não considera.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Filosofia do futuro

Há coisas que a gente sonha e que se realizam, como se a gente as tivesse escolhido. Mas há coisas que a gente sonha que somem no tempo, por caminhos, a gente não sabe por onde, perdidos. Porque há momentos em que Deus nos ouve e cuida, e há outros em que Ele nos deixa. É uma coisa muito doida pensar que o futuro será mais ou menos o que se idealizou que ele seria. E, ao mesmo tempo, concluir que esse “mais ou menos” não nos compete, e que não saberemos, jamais, exatamente, em que medida, ou quais, sonhos e partículas deles, irão se materializar. Os desenhos da existência são feitos de traços oblíquos, flexíveis e passíveis de se tornarem uma coisa que a gente nunca chegou a pensar, mesmo tendo-a sempre pensado, em partes.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Tentativa de poema

Quero fazer uma poesia sem rimas, sem nenhum som, nenhuma lógica, nenhum pensamento. É possível fazer uma poesia-retrato? De momento? Como uma onda que quebra na areia, como aquele instante em que se sente ser a mais bela e a mais triste? É possível um poema daquele escuro minuto em que se fecha os olhos e se pede ao Universo um novo mundo, numa noite de réveillon? Eu quero um poema tão doce como uma música que encanta, apaixona, eleva, desperta na gente um transcender, uma amplitude inimaginável. Quero um poema que revele mais proximamente a delicadeza de um amor que nasce e nem sempre se materializa. Um poema é sempre uma tentativa de alcançar o mais profundo do ser, mas que, pra adentrar, não precisa cavar buraco, apenas apropriar-se de detalhes e retalhos da rotina. As florzinhas daquele vestido branco, molhados de água salgada, enquanto se pedia à Janaína a transformação de tudo. A solidão daquele copo plástico tocando os lábios com champagne originalmente francesa. O toque dos dedos viciados nos anéis dos cabelos novamente enrolados. Um olhar furtado, uma voz macia. Um cenário desconhecido, um planeta revisitado em sonho. Fazer um poema nublado como as imagens em sono, misturadas, tensas, ecléticas. Um poema perfeito e intacto como um amor platônico.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A vida é maior



A vida é maior. De todas as coisas e sentimentos, lembranças e pessoas, mágoas e pensamentos, dores, lamentos, amores. A vida sobressai. Sucedem-se os dias e as obrigações, as refeições todas e o itinerário da sobrevivência, dos cuidados mínimos diários. Conforme a vida segue, indiferente à nossa disposição de viver, o que fica em torno torna-se detalhe, apenas adornos esquecíveis. Permanecem conosco os motivos, algumas nuances e neblinas, aromas e idéias. Mas nem se sabe ao certo quais. A memória seleciona aleatoriamente os momentos que quer guardar. O mais relevante fica pra trás, as companhias imprescindíveis nos deixam, nossa essência se modifica. Porque a gente quer pensar que o que nos faz vivos é o amor, mas a gente vive porque a vida é maior. E isto é tão simples e animal, que a gente não se conforma. Mas a vida sobreleva-se até ao sentimento mais denso e às dores mais fundas. A gente quer justificar a vida, dar-lhe algum sentido. Mas a vida em si é o objetivo e, continuar, à deriva dos acontecimentos, sem escolha ou parada, é um enigma impossível de se desvendar.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

POESIA 35


Uma saudade poente entre os móveis:
Por baixo da cama, entre parênteses, nos sótãos d’alma.
Intermitente, o tempo outra vez demora
Quase um mês numa hora. Falta a calma.
Reanuncia-se a aurora no calendário
É aniversário, tudo se renova.
Gosto destes dias azuis, que às vezes chovem.
Em outubro, a primavera se instala.
É o tempo mais bonito do zodíaco!
É chegado meu exclusivo e irrenunciável reveillon.
Erro as teclas, o sono me toma. O relógio é implacável.
O que faz o amor são pequenos momentos. Convívio, cimento.
Faltam-me ouvidos e olhos
De se ver e de se ouvir. Estou frangalhos.
Sopro as velas com coragem, segue o barco.
A nau é frágil, apesar do esplendor,
E o casco, de matéria delicada.
Abaixa a proa, a maré que alterna,
Ágil como as ondas, flutua a embarcação,
Inunda-se a cisterna. Investigo.
Pois não me apraz o amor de mal contido!
Pretiro o integral a um bordado de fuxico.
Prefiro água e sal ao mel. Lágrimas fiéis ao mal
De doçura irresistível.
Caminho pela madrugada. O escuro me agrada.
Os vãos são bonitos e os pedaços. O vento dita.
Outubro se espalha: agradável e pungente.
Mais uma primavera, mais um dormente no trilho.
Segue a estrada, o trem apita,
Agora são trinta e cinco.