quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Do que as poesias são feitas


Poesias são qual sonhos
feitas de pedaços, morangos, cremes, assoalho
brincadeiras de correr no escuro
Não tem lógica, nem sequência
um filme de Glauber Rocha, um clipe de música
Poesia tem nuances tantos
e curvas
cores opacas e ruas que nunca se viu
São como sonhos em que se mergulha de roupa e tudo
Nelas se flutua, afunda, trepa
com dois ou mais, ou por arestas desconhecidas
É uma loucura bem-vinda
uma tela de Picasso, um jardim de mato alto
Uma noite de lua na floresta
sozinho

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A morte é muito viva


Alguém apertando meu coração
com um enforcador
um fórceps
eu mal respiro
meu útero dói
a morte se aproxima
parece ter aceitado meu convite
e vem macia no meu corpo
pequenas pontadas no meu baixo ventre
a partida estaciona na minha soleira
e eu me deito nela
já não existe aquela força, aquele riso
aquela maldita no meu coração
foda-se a esperança
o nada é muito mais doce e pacífico
tem a cor mais bonita
a viscosidade lânguida
do enigma

Noturnidade


Eu odeio violetas, margaridas,camélias, hortensias.
Eu odeio flores nas pessoas. Quando eu morrer, quero estar nua.
Vestir apenas minha pele.
Pelo menos uma vez na vida, autêntica.
Não quero o perfume da vida no meu cadáver.
Quero finalmente a morte, só a morte em mim. Unânime, absoluta.
Não me façam sorrir, não me cubram de qualquer coisa, das suas lágrimas vis, da sua mentira.
Deixem as flores em paz.
Joguem-me ao mar, pelada. Só a água salgada e as ondas honrarão o meu desejo: nadar em pêlo para o fundo, para o que há de mais noturno.
Sem pensar em volta.

A africana


A africana

Ela andava por aí
Os cabelos imóveis
Nem o vento, nem a chuva os tiravam do lugar
Cabelos afro...
Mas as ideias SEM FRONTEIRAS
Navegavam como areia
E às vezes paravam numa duna,
Às vezes num deserto
Às vezes, numa ampulheta
Mas mesmo assim, qual o tempo
Andavam
Escorriam constantemente
Como aqueles dedos que um dia
Perderam-se nas entrâncias
Dos seus cabelos negros
...
E ninguém nunca mais achou.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Tudo e pouco


Tudo
muito
sobra
e ainda
dá qui, o mundo
voltas
e afloram
curvas, folhas, horas
dá cá páginas em branco
assunto
e coisas que não cabem
frutos
gotas
sumos
e beiradas de areia e granizo
muros e degraus de vidro
entra, senta, fica
toma um café
e então
pega chapéu
cajado, vida
e parte
com seu riso
névoa, rastro
premia-me com o vazio
o silêncio
o infinito
pouco
é o preciso.  

Assombração


Olha pra mim
estou aqui sentada como sempre
à sua porta
espero saíres devagar, sem ruído
pé ante pé
pegar o casaco, a marmita, tirar o carro
“oi!”
olha
não saio deste lugar aqui
é interessante atrás do muro, as rãs escondendo-se do dia
encolhidinhas
olhos friccionados, pele enrugada
entre folhas, nos buraquinhos
e eu aqui
só pra te ver
espio
assobio até
pra ver se tu me notas
mas não queres me ver
pensas que sou um passarinho
desses tantos passarinhos que pousam por cá
e arrancas com o carro
...
vai
amanhã de novo espero-te
nesse lugar escondido
entre pedras
baldio e poético
uma brecha
uma chance pra você
distante uma nuvem negra se adianta
você parte, ela vem - eu
permaneço.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Coração camuflado

Eu invejo os corações que não ardem, aqueles corações serenos e estáveis. Aqueles corações que se contentam em ficar, ficar, ficar, porque sabem que o ficar é sempre tão passageiro. 
Mas meu coração não é assim. Meu coração é inflamável e requer adicional de periculosidade. Incendeia tudo - a mim primeiro.
Por isso ando por aí, craquelê de cinzas, vulnerável ao primeiro sopro. Já queimei inteira. 
Então fique longe, não se aproxime. Você vai querer que eu entenda, vai querer que eu reflita, que eu esteja. Mas eu... eu sou apenas os restos da fogueira.
E tenha cuidado! As cinzas têm calor, ainda queimam, além de poder sujá-lo inteiro com a fuligem da minha resistência.
Você pode sentir-se na trincheira, com o rosto enegrecido, camuflado, se você disser e se você tentar e se você quiser e se você teimar e se você soprar.
E tudo virá contra si: uma poeira quente e intensa, capaz de sujar, de queimar, de entupir seus ouvidos e olhos, os seus buracos corpóreos.
Jamais de perdoar, entender, esperar.
Sinto muito. Eu queria ter um coração em paz. Mas o que ficou em mim são só vestígios e pó. Só as brasas, só as chagas, nenhuma dó.