terça-feira, 15 de outubro de 2013

Você veio

Você veio
na manhã fria
de flores tímidas
e cores clássicas
você veio
finalmente, você veio

como de costume estranhei seus traços
pareceu-me feio
como em geral parecem-se os homens por que me apaixono
você veio e eu nem sabia
se era verdade ou sonho

há barcos a vela adelante
e um rio de nome Plata
alguém achou bonito
o nome brasileiro "namorada"

seu cheiro passa por mim
vez em quando
- fico tonta -
mas não creio tanto

árvores sem folhas pelas margens do rio
calles sempre as mesmas
nuncas as mesmas
e vem você outra vez

você veio.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Pássaros escuros

Esses passarinhos escuros do meu pensamento,
em revoada, sobre a noite assustadora...
Seu piado voa, voa sem rumo,
apesar do coração que ainda pulsa.
Vejo as pessoas que passam a madrugada,
passam na madrugada,
passam pelas ruas.
Vejo minha vida que passa as esquinas,
passa pelas esquinas,
passam as ternuras.
Vejo os filhos que nunca vou ter
e os pássaros em alvoroço sobre as sombras,
sobre as réstias, as estrelas.
E o amanhã despedaçado
surgindo sem o compasso
do amor.

Mil notas

Mil notas eu precisava,
ou mais
pra escrever as aventuras,
o mar
as lágrimas maduras
o riso tardio
os olhos, mil olhos que eu vi
rasgados, redondos, miúdos
calados, ousados, sisudos
os olhos que eu amei
os olhos que me amaram
castanhos, verdes, azuis
que me olharam e aos lugares
que passamos juntos
mil notas pra dizer do abre e fecha dos cílios
da cor dos fios da sobrancelha
- o claro com o negro -
dos arvoredos que passaram
através dos vidros do carro
mil notas, mil versos, mil rimas
do deitar-se quieto nos ombros
do escorar-se na barriga
pensamentos, agonias
mil paladares, mil e um sons
cores mil, mil flores, canções
e seus olhos nos meus.
Chove outra vez na janela
é noite escura em plena tarde
o asfalto molhado brilha
e os reflexos dessa paisagem
:mais um enigma pra olhos vorazes.

Ser leve

Flutuar no chão
Pisando pedras, como se pisa algodão
Ser leve como a flor do salgueiro
Pedaço de neve na primavera
Não temer a morte, a perda, o fim
Ser leve como a brisa da manhã
Como o som de uma flauta na orquestra
Como uma flor do campo, pequenina
Disseminada na relva
Ser leve como um pássaro
Como um beija-flor
Como o coachar dos sapos noite adentro
Ser leve
Como você é
Como só você pode ser
- jamais saberei.

A flor da cidade

Uma flor no fim de tarde
no meio da cidade
coração frio

Tanta coisa que se abre
bicicletas pelo parque
hortelã, pimenta, anis

Grama verde verde verde
gente bela, rosa aberta
pouco azul.

Doce Argentina

Pela rua gélida,
o vento nas orelhas.
Do alto dos apartamentos, as sacadas
de um tempo - que tempo bom ver as estrelas!
Abrir as janelas compridas,
debruçar-se sobre avenidas quase sem carros, sem nada.
O acordeón derrama poesia.
Como pode que a música faça isso de um povo?
Dê-lhe feição, aroma, clima?
Um tango ilumina o Caminito
: beco de cores desta Argentina
tão suave, doce,
tão fina.


Início de uma história

Chove
e a rua molha.
A música toca na rua,
a fumaça da linguiça sobe, como nuvem,
impregna as roupas, os cabelos.
Os portenhos olham nos olhos, disparam seu charme, sua diversidade.
Como é quente a América do Sul,
Inda que o vento esfrie,
Inda que a chuva molhe,
o calor latino
não tem comparação.
Vendem-se flores nas ruas,
ramalhetes dóceis, frágeis nas calçadas.
Como são doces as barracas de flores.
Como é doce aquela canção!
Ver seu desenho em cada rosto que passa,
os personagens de um filme sentados na poltrona à frente,
fazendo as inesquecíveis cenas
do início de uma história de amor.