quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Poesia dentro da praxe

Enquanto o trem rangia sobre os trilhos, vindo
Eu vagava cansada, entre nuvens
Procurando enxergar através dos vidros
A fumaça das casas
Viajava há um dia pelos ares
E porque podia medir a distância em tempo
A separação em mim se alongava
Como se fosse definitiva
E, nas árvores ao contorno dos morros
Eu ainda não via as folhas que faltavam
E o cantado da língua não era bonito
Só mais um artifício do desconhecido
Só outro enigma em terra de gringo
Vi minha avó nos olhos de uma velha distinta. E a mim mesma
: olhos atrevidos, amendoados, que riem sozinhos
Às malas quadradas, difíceis de levar,
Reservei os sonhos de peso
Ainda assim, quando as abri, tudo faltava
Parece praxe dizer isso a uma semana de casa
Mas medir o espaço em meses é poema
Com nome predestinado de saudade
Porque quando a distância é tamanha
Que se possa medir em águas
Já se aporta com o peito cheio dela
O oceano transbordando pelos olhos
Ao desembarcar da caravela

O que eu mais gosto

O que eu mais gosto daqui são os velhos
As rugas juntas e a pele grossa, os cabelos brancos
O que eu mais gosto na Europa são as pedras que compõem as casas
Os prédios pequenos, as igrejas e as ruas do centro
Os tijolos de outras épocas que erguem sólidas construções e arcos
O que eu mais gosto é o destemor de assumir o antigo e o precário
São as avós e as tias zanzando pelas calçadas de Coimbra
Sentadas nos cafés, nas praças, padarias
Com os netos, os amigos
O que eu mais gosto destes dias que surgiram em minh’alma
É a vida, em todas as etapas exposta, e à mostra como uma coisa bonita
Um outdoor, um cartão de visitas
O que eu mais gosto é ver escombros e pátios, janelas e varais
Chaminés acesas e cortinas
Senhoras de casacos de lã e avental pelas ruas, restaurantes, ao pé das casas
Senhores trajando roupas de alfaiataria e boinas
O que eu mais gosto é não haver asilos pra esconder o tempo que passa
Mas abrigos, lugares, cadeiras. Companhia e vida
Nas varandas, nos quintais, nos sítios e paragens
Pra toda essa gente antiga e edifícios
Que envelhecem vestidos de si mesmos
Orgulhosos, pálidos e amarrotados. Ostentando poesia

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Abri os olhos



Abri os olhos
Árvores desfolhadas
Um safári de leões
Um rio na minha casa
Olhinhos mouros de uma velha senhora
Abri os olhos
O coração partido como num romance acabado
Uma dor de despedida
Línguas estranhas e personagens
Nunca dantes vistos, ouvidos, tocados
Abri os olhos
Tetos angulosos, próximos das testas
Trens dentro do horário
Pães e queijos delicados
Vinhos que não choram
Abri os olhos
Revi você
Seus traços, seus beijos, seus olhos
Havia me esquecido de que eram amarelecidos
Por vezes esverdeados
Abri os olhos
Tudo é frio e as malhas são baratas
As portas estão trancadas??
Minha história está do outro lado
Mas é aqui que eu moro há três meses
Ou há três décadas?? - quem sabe?
Abri os olhos
A Europa se mostra
Por enquanto em casas sobrepostas e ruas largas
Por enquanto em números e horas
Por enquanto e só enquanto demoro
A cortar cordas e, de verdade
Abrir os olhos

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Romances

Eu gosto de histórias compridas. Gosto de romances, livros que se estendem na gente e se multiplicam em detalhes pequenos que nos apaixonam. Compartilham da nossa vida, das nossas pequenas coisas, das nossas noites e instantes despercebidos, e quando a gente dá por si, já não pode deixá-los, eles ficam na gente pro amanhã e sempre. Em personagens, passagens, acrobacias. Às vezes se perdem de seus nomes e títulos, se enroscam em capítulos perdidos, que fisicamente não existem. Eu gosto das coisas que se desenvolvem, dos jardins, das colinas, da areia da praia. De tudo o que se constrói com tempo, paciência e um dedo de mistério. Livros de inúmeras folhas são como a vida: remetem-nos a um lugar que é feito de todo dia e que apraz com a presença continuada e o aconchego das horas solitárias. Robustece com o procedimento encadeado da rotina, que é dotado de uma doçura tênue como as manhãs e seus aromas, e que, muitas vezes, só é perceptível depois da última página.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

No que eu acredito 2

Eu acredito na minha filha. Acredito em magia, na força da natureza, no compasso da batida, no ritmo do coração. Eu acredito em fantasia, em páginas de livros e cenas de filme. Eu acredito em expressão facial, em antítese, na complexidade de um, na unidade do todo, em Jesus e Maria.
Eu acredito em milagre. Acredito em poesia e em histórias fantásticas. Acredito em orvalho e vagalumes. Eu acredito no dia e na noite, acredito no mar e em tubarões assassinos. Acredito em pessoas iluminadas, encantadores de cães, cavalos e tubarões. Acredito ser possível dispôr um tubarão com o nariz para baixo, reto como uma tábua, em pleno oceano.
Eu acredito no amor, na paixão, na amizade. Acredito também no mal , na vileza e no crime.
Eu acredito no sol, e é porque sei que ele está lá, em algum lugar, é que eu levanto todo dia.
Eu acredito no passado, no futuro, num tempo editado num tempo desconhecido. Acredito nas atrocidades cometidas e nos algozes nossos de cada dia. Mas acredito mais no sonho, na ousadia, na coragem de arriscar-me a ser o que ninguém julgou que eu poderia.
Eu acredito nisso. E você, em quê?

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

UM POUCO DE NADA

Um pouco de nada, às vezes é tudo.
Um pouco de vazio pra perceber de verdade quais são os sentimentos e o estado de espírito.
Sem esse fundo, esse piso, a gente só imagina o que sente. Saber mesmo, a gente só sabe se se enclausura consigo por um tempo, sem declarações, sem companhia, sem interferência.
E então, gestos e perfumes que eu julgava perdidos, vêm pra mim e me rondam, auras tão densas quanto corpos, e respiram no meu ouvido frrrruuuu - eu sinto o vento e o calor, uma brisa de verão na minha nuca, um abraço perfeito no meu ser inteiro.
Mas não é só isso. Debaixo de tudo, descubro meus olhos baixos - olhinhos de esquilo - e minh’alma se deita, cansada e encharcada. Encosta-se nas paredes, lânguida e plácida. E eu me ponho a contemplá-la, e penso que ela é tão bonita...
Quando ficamos a sós, eu olho para ela e ela me ignora. Não quer mais ceder aos meus caprichos e conveniências, às minhas ignóbeis obrigações. Vira-me a cara e finalmente se sente à vontade: meu rosto sem sorriso.
Então nos estranhamos um pouco: por que ela não é tão colorida, por que ela se esgueira? porque ela não me acolhe e me convida pra um passeio branco e pacífico? - ela aprecia os vales e as florestas, gosta de se camuflar entre as folhas, chover com as nuvens,
Vive molhada.
Mas depois de um tempo com ela, eu já não a rejeito. Passo a apreciar seus cinzas e marrons e penteio com os dedos sua matéria de sombras: uma textura de clara de ovo, só que escura.
E então as lembranças retornam, fincam o pé no meu entorno e pronto! Lá está o meu mundo.
Todos os meus temores e desejos numa valsa. Minh’alma no meio.
Eu e minhas vesículas vazias, imperfeições globulares onde cabem ternuras de antigamente e esperanças perdidas.
O nada nos devolve uma à outra. E a realidade é bonita. É o que de mais bonito a gente pode ter.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Coisas pequeninas

Coisas pequeninas
Tijolinhos
Gravetos
Cílios
Quinquilharias com que se fazem ninhos
Coisas pequeninas
Seus lábios
Uma mordida
Um assovio
Gestos
Sobrancelhas
Beijos
Coisas pequeninas
Cheiros
Passos
Hálito
Coisas pequeninas
Como o vento
O tempo
O mar
Coisas que ficam
Cores
Voltas
Caras
Minúcias desensaiadas
Roupas
Dedos
Notas
Coisas pequeninas que escapam
Imperceptíveis
Incontroláveis
Marcas
Coisas pequeninas
Uma piscada
Hábitos
Pontualidade ou atraso
Unhas
Punhos
Anéis
Coisas sem porquê
Desmedidas
Coisas démodé
Poses
Bicos
Coisas de você

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

amor feijoada

está tudo estragado
depois que você passou a corda no meu pescoço
e laçou minhas pernas
eu que era um novilho ingênuo
e trotava sem medo -
algum ingrediente azedou
e fez de nós um mexidão indigesto e mal cheiroso
está tudo estragado
o cozido já não presta
tornamo-nos asquerosos pedaços de animal pululando na panela fumegante
e um pedaço ou outro da gente
se conecta por pontes de gordura
e se beija
mas está tudo estragado
os pedaços já se perderam
e não se sabe mais se esta orelha é sua
se aquele rabo é meu
nossas línguas ferventam juntas
e nossas fibras se confundem
tornamo-nos uma imensa feijoada azeda
numa panela de barro velho
prestes a espatifar no piso de vermelhão

Neblinas de Liverpool



Você precisa do sonho porque o sonho é esta neblina que cobre o horizonte longínquo e exige que a gente aperte os olhos pra enxergar mesmo o que está perto, - ainda que parcialmente e faltando peças, como num quebra-cabeças em que você pode inventar a seu bel prazer o encaixe perfeito. O sonho é esta nuvem que escurece o lugar em pleno dia, esta névoa em volta da torre que deixa o cenário com um romântico ar londrino, antigo e polido, repleto de figuras vivas que você só concebia no papel: soldadinhos eretos sincronizados, ônibus de dois andares, nuvens ao redor de um enorme relógio, uma rainha, Liverpool. Você precisa dos sonhos cinza-claro pra tapar o amarelo que brilha soberano sobre a tua vida cheia de vida, de gente, de agenda e rotina. Você precisa do sonho e por isso se deita sobre Sargent Pepper’s comigo e fecha os olhos. Adormece envolto no vapor da comida e neblina de Londres seu cubículo suburbano, refugiando-se de si mesmo, um pouco John Lennon: frágil e agressivo. Você precisa do sonho e por isso me abraça como quem se aconchega no vazio e se enlaça nas brumas.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

CERTAS COISAS

Certas coisas eu só ouso sonhar

Certas coisas, aventuras
eu só ouso voar
Certas coisas, loucuras
eu só ouso atirar
pro lado das doçuras que ouço
e não ouso provar
Certas coisas miúdas têm força
de arremessar
Certas coisas, fissuras
são altas
certas coisas, alturas
são falsas
- eu não ouso saltar
Certas coisas, birutas
são curtas
Certas coisas, funduras
são ocas
Certas coisas, ternuras
certas coisas, canduras
certas coisas, brochuras
eu só ouso dobrar
a quina de cima da página
pra não deletar
Certas coisas, criaturas