quarta-feira, 23 de junho de 2010

Túnel do tempo


De repente, o vi. Suas sacolas cheias de compras. Presentes.
Como num sonho, ele sentou mesas à minha frente, voltado pra mim. Pude sentir seu cheiro, a textura de novelo de sua pele tão branca. O cabelo mais longo, como quando o conheci.
Vestia a roupa de sempre. Como se eu o tivesse visto ontem e ainda não se trocasse.
Os mesmos gestos e hábitos, e distância. Estávamos distantes assim, àquela distância, há um passo do fim.
Mas seu retrato era o mesmo. E não era parado, mas vivo! Como saído de um túnel do tempo. Como estacionado no espaço. À espera de mim.
Seria fácil levantar-me e tocá-lo. Dizer palavras surradas e sussurrar seu apelido amoroso, com o dengo de outrora. Senti-me como a estender a mão e tocar o passado. E apagar os dias chorados. E fechar o buraco escuro.
Mas, outra vez de repente, ele piscou. E eu vi, ao contrário, - que os segundos passavam para ele, mesmo que parados pra mim. Para que eu fotografasse a cena boa que eu apaguei com tudo o mais. Com o luto. Com o que não torna ou revive.
Então, desviei os olhos de volta. E mesmo com aquele retrato na mente, e aquela ilusão de retrocesso, ainda latente, vislumbrei as mesas vazias que nos separavam, serem ocupadas. E as sacolas cheias de presentes para crianças, carregadas pelos braços dele.
Crianças já crescidas que eu apenas soube concebidas, mas que eram a prova viva do transcorrer do tempo, do desvio de nossas vidas. E também dos dias chorados, das noites pesadas, da alegria perdida.
Então ele se levantou e foi. E vi suas costas fartas e a falha mais larga no alto da cabeça, sob os raros cabelos compridos.

Blindagem


Não quero blindagem
Quero estar sujeita aos ataques,
Quero estar com minhas vestes de carne,
Quero ser eu mesma, atreita a me ferir.
O quão interessante seria viver sem os riscos?
Sem a possibilidade de perigo?
Sem o medo de cair?
Quero o frio na barriga,
O coração palpitando, pressentindo,
O sangue correndo nas veias,
Às vezes, escorrendo da pele,
Que é a camada que fere,
Apesar de outras ainda mais sensíveis,
Que, sob ela, se protegem,
Pra que o corpo não seja morto,
À primeira assertiva do tempo
Ou da dor.
Onde há vida, há cicatriz,
E minha armadura é de coragem,
De pele, sangue e vontade.
Minha blindagem é talhada
Na matéria-prima original.
Com ela não perco o sal,
Continuo a sentir o sabor
De viver sem prever o final.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Leitura




Há coisas que não se explicam...O que diz mais que as palavrasSenão os fatos?Talvez a percepçãoA nuance que se almeja omitirOu quem sabe os traçosQue não se disfarçamNem com sensatezNem com cuidadoO que mais importaQue as justificativas detalhadasSenão o segredo guardadoNas causas veladas?Aquelas de origem secretaOu talvez desconhecidaAté do próprio artista?O ser que protagonizaAs cenas da própria vida?O que mais se aproximaDaquilo que originaAs escolhas entre as esquinasDe vários sentidosNem sempre é de se verÀs vezes só de se lerNas entrelinhas.

domingo, 13 de junho de 2010

O som e o sentido



Não quero saber mais de palavras
Dessas usadas e escolhidas
Com esmero, após várias tentativas,
Com a intenção única de compor um verso,
De encaixar-se perfeitamente numa rima.
Quero as palavras controversas
E também as palavras simples,
Até mesmo as palavras mais usadas
Na linguagem do dia-a-dia.
Não quero palavras que só rimam,
Ou enfeitam ou combinam
Com outras já pensadas e apostas
Numa estrofe integralmente planejada
E trabalhada pela métrica, pela regra.
Quero as palavras cheias,
E as palavras ambíguas.
As palavras que se calam
Quando a balbúrdia domina.
Não me importo com palavras que badalam
Tinindo alto nos ouvidos, como um sino.
Quero as palavras que me tocam
E que se completam não com som
Mas com sentido.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Defesa

É interessante perceber que quanto mais aumenta em mim a capacidade de escolher no outro, ou do outro, só o que eu quero ver, viver, saber, participar, mais se aviva no outro a necessidade de dar-me aquilo que recuso. Desperto uma revolta, uma ira. Mais que uma necessidade de revelação, é quase uma afronta para o outro que eu me negue a participar daquilo que não me interessa. E essa afronta transforma-se numa pungente força de auto-afirmação e encontro com a essência inteira daquele ser, de quem repudio um pouco. É estranho que eu seja capaz de causar esse efeito, quando o que espero é exatamente o oposto. Procuro deixar oculto, com o que ofusco, aquilo que trará perturbação à relação. Aquilo que fará que não haja em mim o mesmo ânimo ou a mesma entrega que haveria, se não aquilo. Mas esta defesa é quase um insulto. Aquele que convive com ela, sente-se rejeitado, sente-se humilhado até, pela minha capacidade de engano e minha falta de capacidade de encarar o todo. Não sabe, o outro, que é minha maneira de ficar inteira. Participar só um pouco de sua alma verdadeira, de maneira a não confundir meus planos, não exacerbar meus ânimos, não me tornar inevitavelmente insuportável ou sem forças. Porque, manter-me parte no escuro, preserva não só em mim, mas no outro, a integridade inaceitável, a personalidade incomparável. E só nessa meia-relação inteira é possível a convivência, a complacência, a emoção.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Modelo único

Não quero.
Não quero seus olhos dispersos,
Sua boca sorridente,
Seus mistérios em aberto,
A la carte
Não quero.
Não quero sua companhia,
Nem sua mão,
Nem seu abraço.
Quero seu espírito,
Seu sorriso,
Seu regato,
Só a meu lado.
Não quero o amplo.
Só o restrito.
Não quero o explícito,
Só o complexo, o omisso.
Quero seu tempo, seu viço,
Seu silêncio, seu convívio,
O exclusivo.

Juventude

Os jovens...
Procuram coisas que têm histórias.
Velhas canções, de velhas bandas monstruosas, caquéticas...
Assim descobrimos que estamos amadurecendo.
Quando não temos mais que buscar coisas velhas pra encontrar histórias, porque as histórias se multiplicam.
Tantas épocas... tantas vidas...
Músicas velhas, às vezes irritam.
Músicas novas para a sinfonia do presente.
Trilha sonora do agora.
Sabemos que os momentos atuais são as histórias futuras - povoadas de músicas. E de cores. E de luzes.

O violão é o artista

O violão é um artista,
Sorri com sua boca circular,
Conversa com suas lineares línguas,
Canta com seu vibrar rítmico.

“Não. Ele não é um artista.
É apenas a caricatura da mulher brasileira!”

A mão é música!
Toca as cordas, determina as notas,
Produz o som.

“Não. A mão não é música, nem artista.
Mas é uma pista.”

O ouvido é o mestre.
Possibilita o entendimento, a sintonia, a percepção.

“Não. O ouvido não é o mestre.
É só um complemento,
É o objetivo da canção.”

O homem é o criador.
É a mão, o ouvido. É o artista. O poeta.

“Não. O homem não é música.
Música é também poesia.”

“Não. O homem não é artista.
Artista é o intermediário do sentimento.”

Minto então: o violão é o artista.
É o instrumento.
A natureza.
A criação.

Errar é humano

Só há uma certeza:
Você vai errar.
A cada dia, a cada passo,
Há uma certeza
Em nosso encalço:
O erro é fatal,
Apesar do embaraço.
É o motivo,
E a destreza,
É certo percalço
Do dia-a-dia.
É mais que humano
Mais que provável.
É certo
Como matemática.
Por melhor que seja a intenção
É o dano necessário,
Relicário do coração.
É certeza,
Sobre-humano, sobrenatural,
Como movimento e estática
De pessoas e de momentos.

O perdão é o esquecimento.
E o esquecimento será o perdão?
Terá ele o condão de me libertar
Reconstituindo o filme?

De limpar o cristal,
Reintegrar o quebrado do vidro,
Quebrar as muralhas,
Destruir os abrigos?

E entregar-me os campos desimpedidos
E o céu limpo
E as águas correntes
Restituindo as migalhas?

O esquecimento está no perdão.
Perdoa, então, coração.
A si, a outrem,
Além, aqui,
Ontem e hoje – a semente.

O perdão é o esquecimento.